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2020-2022
Sustentabilidade: Comunidade e Ecossistema
No início da Primavera de 2020, tornara-se visível a vitalidade de todo um novo sistema de fauna e flora, das ervas às flores, dos arbustos às árvores, dos canteiros aos prados centrais, passando pelos vasos, pelos muros e pelo gradeamento de separação com o pátio contíguo ainda em obras. O crescimento saudável das espécies fazia crer num equilíbrio alcançado. Tínhamos pássaros e insectos especialistas, as várias áreas destinadas à co-habitação humana também tinham sido, gradualmente, mobiladas e dispostas tendo em conta a exposição solar adequada à variedade de actividades dos residentes.
Quando o Covid-19 primeiro nos remeteu a todos a prolongadas quarentenas nos edifícios, o jardim constituiu um verdadeiro oásis de refúgio para vizinhos nunca dantes vistos, prolongando também o tempo de permanência daqueles que já o frequentavam, como os trabalhadores de um dos escritórios, que passaram, nomeadamente, a receber clientes no espaço comum onde continuávamos sozinhos a cuidar do solo, dos seus animais e plantas, bem como da revitalização de maior área de ladrilhado e da manutenção das muitas estruturas e equipamentos que adquirimos, recolhemos, transformámos ou construímos. Uma vez confinados, começámos também um trabalho de pesquisa e colaborações artísticas incidentes no próprio espaço.
Foi nesta altura que iniciámos uma residência no pátio, que teria a duração de cerca de quatro meses e que desencadearia a fundação deste colectivo, inicialmente convidando artistas e um antropólogo a reflectir connosco à distância nesta história de ocupação e de criação de Natureza em espaço semi-público, mas cedo estendendo também o convite à participação a todos os vizinhos: os de sempre, mas também aqueles que ainda não conhecíamos, frequentando o jardim sem qualquer informação sobre a origem do mesmo e, naturalmente, sem quaisquer responsabilidades na sua manutenção. Todos os investimentos no espaço eram à data, ainda, inteiramente, da nossa responsabilidade, desde que em 2017 o novo proprietário e actual senhorio de todas as habitações e escritórios, nos autorizara a manter o jardim a nosso encargo, anulando os custos anuais de manutenção a todos os inquilinos. Compreendendo que a gestão deste novo fluxo de utilização humana no quadro de uma pandemia teria que ser agora formalizada, até porque novos conflitos respeitantes a regras de higiene e hábitos de consumo durante as quarentenas se começavam a vislumbrar, convocámos uma reunião geral para todos os interessados no jardim. Desta reunião, a que compareceram cerca de oito pessoas representando cinco habitações, resultaram uma lista de regras de utilização do espaço adaptada à pandemia e o compromisso de colaboração na acomodação do lixo reciclado (em franco aumento de produção), no cuidado das plantas, na limpeza e na manutenção dos móveis e outros equipamentos. Acordou-se na utilização da janela recuperada do fogo de 2017, onde afixáramos o primeiro mapa do jardim, como lugar acessível a todos para partilhar informação e continuar a comunicar; manifestou-se interesse em participar nos custos sazonais, no financiamento de projectos e em acções de formação de jardinagem e permacultura; comprometemo-nos a elaborar uma estimativa de orçamentos passados e futuros, bem como a oferecer formação gratuita para desenvolver o projecto colectivamente.
Em 2020, ocorreu ainda, na presença do proprietário, uma inspeção camarária de verificação de segurança das estruturas, na qual se assegurou o cumprimento da legislação. Na mesma altura, garantimos também a ocupação da enorme área ladrilhada à entrada do pátio, junto ao novo muro de separação com a área do lixo, em que já instaláramos canteiros elevados, mobiliário e equipamento de jardinagem. Ali trabalhávamos em novos projectos, para além de se tratar de uma zona popular de lazer e reunião de residentes, onde o proprietário tencionara instalar uma parte do novo parqueamento de bicicletas. Para além das quatro exibições do cabaret resultante da residência artística, que ali apresentámos no contexto extraordinário da pandemia, atraindo uma boa parte dos utilizadores do espaço, bem como activistas locais, colegas e amigos, e possibilitando uma primeira discussão pública sobre o projecto Reichen-Hof, foram também criadas, nos meses que as antecederam, as condições para o desenvolvimento sustentado de processos criativos colectivos. Uma vizinha colaborou no vídeo realizado aquando da instalação da secção de deserto de cactos, uma outra fotografou o primeiro espectáculo, assim como os que se lhe seguiram em 2021. Estas vizinhas, juntamente com um terceiro residente, participaram também nos vários workshops de introdução à permacultura e acções de jardinagem urbana que realizámos então, tendo em vista o seu continuado interesse no cuidado do jardim ao longo das estações seguintes: uma delas colaboraria no financiamento da construção de uma nova caixa de composto, investindo no seu próprio canteiro de legumes e, ao longo de um ano, responsabilizar-se-ia pela remoção de ervas daninhas e alguma da limpeza da área ladrilhada. Todos os outros, os que também se chegaram a interessar pelas plantas e aqueles que se foram engajando na discussão do aspecto sócio-cultural do projecto, nunca se comprometeram, de facto, com tarefas e custos regulares. A participação no desenvolvimento de projectos pontuais e eventos, contudo, dava provas de alguma intencionalidade comunal.
Apesar do sucesso da ocupação e do estabelecimento do ecossistema, tornou-se óbvio, em 2021, que a gestão da utilização do espaço e a manutenção do jardim e dos equipamentos não contariam com mais apoio ou colaborações efectivas. Na janela reservada à comunicação, continuávamos a trabalhar na partilha de informação e registo da calendarização de tarefas, projectos e custos, assim como de convites para acções de maior envergadura para a prosperidade das plantas, como os workshops de compostagem e fertilização. Estes workshops poucos residentes trouxeram, não chegando a constituir um grupo de trabalho capaz de aprofundar conhecimentos, mas atraíram alguns interessados através das redes sociais, numa altura em que já alargáramos a actividade do colectivo à pedagogia, começando agora a organizar oficinas de tempos livres e aprendizagem de línguas para crianças e jovens com recurso a técnicas de jardinagem, expressão dramática, trabalhos manuais e capoeira.
No início do Verão, desenvolvemos um projecto, em parceria com dois vizinhos, para a concepção de um tanque comunal móvel. Construído a partir de uma banheira, paletes e canteiros, funcionaria não só para usufruto humano, como também enquanto reservatório de água, ampliando a superfície de plantas. Nas oficinas, passaríamos a utilizá-lo para transmitir conhecimentos básicos de ecologia como a captação de água e a reutilização de materiais. Este projecto inspirou um bloco de performances em colaboração com artistas do colectivo, activistas locais e os mesmos vizinhos, e foi apresentado ao público num dia repleto de actividades envolvendo também uma leitura, uma pequena roda de capoeira de Angola e jogos multidisciplinares para várias gerações. Já no final da estação, apresentámos o concerto de uma banda local, durante o qual trouxemos diversos discursos de cidadania ao palco, das condições de produção e ensino artísticos em Portugal ao activismo climático no mundo, passando pela luta por direitos das mulheres indígenas na Argentina. Antes disso, convocáramos uma segunda reunião geral de vizinhos, da qual resultou uma distribuição calendarizada de tarefas que, a médio prazo, não se concretizariam. O nosso jardineiro residente encontrar-se-ia ausente já no Outono, bem como na Primavera seguinte: a todos os presentes se manifestou, claramente, que uma colaboração efectiva e continuada se tornaria imperativa para a sustentabilidade do projecto Reichen-Hof. Três dos sete residentes participantes nessa reunião mudar-se-iam meses depois.
No início de 2022, dividimos os esforços da nossa equipa de duas pessoas entre a pesquisa no interior de Portugal - tendo em vista a construção de uma quinta pedagógica onde é nossa intenção continuar a desenvolver projectos deste colectivo, - e a manutenção do ecossistema criado em Berlim. A Primavera trouxe a colaboração única de uma jardineira convidada na compostagem, fertilização e cortes urgentes, assim como uma invasão anónima, dos canteiros elevados como dos vasos e do solo, na forma de cascas de ovos e uma monocultura de tomate, que em muito impossibilitaram o trabalho pedagógico de sementeira, rega e colheita com crianças, matando algumas espécies e atrofiando outras. Entretanto, a construção abrupta de um muro entre o jardim e o pátio adjacente destruiu estruturas e matou plantas, criando novas condições de exposição solar e circulação de ar, que, sem dúvida, continuarão a inspirar cuidados continuados. As primeiras acções de salvamento, incluindo um corte radical e a reconstrução de estruturas de apoio à recuperação das plantas, tiveram, mais uma vez, lugar na ausência de quaisquer interessados.
A rotatividade dos inquilinos da maior parte dos apartamentos implicou, por fim, um reforço do esforço no préstimo de informações sobre a gestão autónoma, mas não colectiva, do espaço, atraindo apenas uma pequena família que, pela primeira vez na história da comunidade, se voluntariou para partilhar custos começando, de imediato, a colaborar nas tarefas quotidianas do jardim. Uma vez ausentes, sabemos agora que, sem uma equipa fluente nalgumas técnicas e interessada no conceito do projecto, não haverá reposição de custos para todos, por parte do proprietário, que seja capaz de cuidar da manutenção dos equipamentos e da diversidade da fauna e flora: o seu destino provável será desaparecer, dando ou não lugar a um jardim tradicional despido de uma ilha para insectos e aves ou de um solo repleto de vida, de que a frescura e a beleza criadas são testemunhos. Este Verão, quisemos estender um convite à comunidade de permacultura e jardinagem em Berlim, porventura interessada no futuro resgate de algumas espécies e estruturas, bem como àqueles vizinhos que possam vir a querer responsabilizar-se pelo acordo alcançado com o proprietário, para uma reflexão pública alargada. A transmissão oral de conhecimentos aliada a uma prática sistemática para o bem comum, assumida pela própria comunidade, foi e será a perspectiva com que continuaremos a abordar a relação sustentável entre um ecossistema e a intervenção humana.
No Outono, assinalámos a última colheita com uma cerimónia performativa a 31 de outubro de 2022. Este evento reuniu, pela última vez, artistas, activistas, amigos, interessados, novos colaboradores e vizinhos de várias origens, línguas e gerações. Partilhou-se uma sopa comunal e discutiram-se passados e futuros do pátio e do nosso projecto. Na Primavera de 2023, doámos e vendemos equipamentos e plantas, encerrando, oficialmente, a nossa ocupação. No início do Verão, verificaram-se novas intervenções do senhorio e do senhorio vizinho em dois muros do pátio: não interferimos nas obras, nem procedemos ao resgate de plantas.
Em Julho partimos, definitivamente, para Portugal, onde recomeçaremos do zero, no Baixo Alentejo, um projecto sócio-cultural, artístico e ecológico.
Rita Ferreira e Luís Gabriel
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